A. Fundamentos da
Interpretação Bíblica
I. Necessidade e Objetivos da
Interpretação Bíblica
1. Necessidade da Interpretação Bíblica
As evidências bíblicas internas mostram que os
documentos inspirados que compõe a Bíblia tem necessidade de interpretação. O
Evangelho de São Lucas registra que o Senhor Jesus Cristo ressuscitado
"explicava-lhes" (diermeneuo = interpretar), — aos discípulos
que se dirigiam para Emaús – "o que dEle se achava em todas as
Escrituras" (S. Luc. 24:27, AA). O próprio Senhor Jesus reconhecia,
portanto, que era necessário explicar, interpretar, a Bíblia dos Seus dias,
i.e., o Velho Testamento. A interpretação da Bíblia requer uma abordagem
reverente e com fé, aliada a um esforço deliberado e extremamente cuidadoso.
Paulo ordena a Timóteo que apresente a verdade correta e exatamente,
manejando-a com grande cuidado: "Procura apresentar-te a Deus, aprovado,
como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da
verdade" (2 Tim. 2:15); a RVS traduz rightly handling (manejando
corretamente). Existe o perigo de falsificar e corromper a mensagem de Deus (2
Cor. 2:17), e isto pode ser evitado, usando princípios sadios de interpretação
bíblica ao se manusear a mensagem da verdade, tudo fazendo sob a direção
iluminadora do Espírito Santo,
A necessidade de interpretação da Bíblia surge por
causa dos problemas da distância da nossa situação, cultura, tempo e lugar em
relação aos escritores bíblicos. A primeira barreira que o intérprete precisa
vencer é a da língua. O Velho Testamento foi escrito em duas línguas semíticas,
o hebraico e o aramaico, e o Novo Testamento numa língua indo-européia, o
grego. Portanto, para que a Bíblia seja entendida hoje, é preciso traduzi-la, e
isto envolve problemas de interpretação da Escritura.
Nossos costumes de hoje dificilmente são
os dos tempos bíblicos. Até recentemente os interpretes não tinham qualquer
possibilidade de explicar porque o misterioso Eliézer de Damasco aparece
como herdeiro de Abraão antes do nascimento de Isaque (Gên. 15:2 s.).
Hoje, porém, de posse dos antigos textos de Nuzu, sabe-se que, de acordo com
uma prática legal dos tempos patriarcais, a propriedade era inalienável, e se
usava, então, o costume de herdeiros adotivos. Um casal sem filhos podia
adotar alguém de fora para ser seu herdeiro, pratica da época, muito bem
confirmada por documentos que temos dos anos ca. 2000-1500 AC. Tal herdeiro
passava para segundo lugar no caso de vir algum primogênito. A estranha
história do roubo dos "ídolos do lar" ou terafins,
praticado por Raquel (Gen. 31:34), pode hoje ser compreendida graças a
uma lei encontrada entre os textos de Nuzu e que dizia que "a posse de
tais ídolos pela esposa garantia para seu marido a sucessão na propriedade do
sogro." Foi por isto que Labão, após ter perseguido Jacó e seus do
mestiços e depois de ter procurado estes ídolos sem qualquer êxito, tratou
rapidamente de garantir o direito de herança para seus filhos, mediante um
concerto com Jacó, obrigando-se ambos a não cruzar determinada fronteira na
qual concordaram (Gên. 31:48-54). Por motivos e razões semelhantes, conhecemos
hoje muitos costumes que eram desconhecidos até bem pouco tempo.
A maneira ocidental de pensar não é necessariamente a
dos escritores da Bíblia. No ocidente o pensamento humano sofreu a influência
da lógica e da filosofia gregas. Não se encontra no VT um exemplo sequer de
lógica grega, i. e., um silogismo que analise um argumento formal, baseando-se
na proposição duma premissa maior e doutra menor que, se verdadeiras, levam à
conclusão de que determinado fato é verdadeiro. O tipo de
lógica que se encontra no VT baseia-se na experiência e não no raciocínio
dedutivo. A diferença entre os
pensamentos hebraico e grego5 não deve levar à conclusão errada de que, pelo fato
dos escritores da Bíblia terem vivido num mundo de pensamento diverso da
cultura e do pensamento ocidentais modernos,
nossa cultura e pensamento sejam
superiores e a deles inferiores, irrelevantes ou sem qualquer significado.
Estas noções — erradas precisam ser combatidas com todo o vigor.
2. Objetivo da Interpretação Bíblica
A natureza da Bíblia como corporificação do propósito
divinamente revelado para os homens de todos os tempos e de todas as raças,
dita os objetivos básicos que devem ser observados por tradutores e interpretes
da Escritura.
Uma interpretação bíblica própria e adequada busca (1)
determinar o que o escritor bíblico inspirado, como instrumento escolhido de
Deus, compreendia, ele mesmo, e queria comunicar para os ouvintes e/ou leitores
do seu tempo; (2) compreender e expor a implicação completa e o significado
profundo, intencionado ou explícito, das palavras dos profetas, e se ele mesmo
estava ou não cônscio disto; e (3) traduzir e transmitir a forma e o conteúdo
da verdade bíblica para o homem moderno. Nossa era duma sociedade tecnológica
secularizada e duma cultura que a acompanha, aumenta o abismo que há entre o
mundo bíblico e o nosso, colocando um peso cada vez maior sobre os objetivos
básicos da interpretação bíblica.
II.
A Unicidade da Bíblia e da Interpretação
1. O Autor Divino e os Escritores Humanos
A unicidade da Bíblia resulta da sua origem divina e
da dimensão humana. A origem divina é atestada pelo testemunho de que "a
profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos
de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo" (2 Pe. 1:21, AA). Paulo dá
ênfase ao fato de que "toda Escritura e inspirada por Deus (theopneutos,
2 Tim. 3:16). Isto significa que, no seu mais verdadeiro sentido, ela tem sua origem em Deus e,
portanto, procede de Deus. Embora a origem divina da Bíblia seja o fato mais
básico e a realidade mais fundamental da fé cristã, a auto-revelação de Deus
tal como está contida na Escritura, chegou até nós através da linguagem humana
de homens inspirados que apontam para a dimensão humana. A Bíblia tem Deus como
seu autor, mas chegou até nós com as dimensões humanas da sua linguagem e dos
característicos peculiares dos seus escritores. Esta dupla dimensão da Bíblia,
a sua origem divina e os seus aspectos humanos, é determinante e decisiva para
o desenvolvimento de princípios sadios e adequados de interpretação bíblica.
Baseando-se nesta dimensão dupla, o intérprete da Bíblia tem necessidade de se
preocupar com o conhecimento da intenção das palavras usadas pelo escritor
humano inspirado, do significado que elas tinham para o povo dos seus dias, e
do significado que o divino Autor lhe queria dar através destas palavras. É
preciso cuidar muito para não subestimar cada uma destas dimensões. A Bíblia
não deve ser manuseada como se fosse um simples livro humano, porque
"apresenta uma união do divino com o humano" (GC, 9).
2. A Autoridade da Bíblia e da Interpretação
A autoridade da Bíblia repousa sobre o fato
excepcional de ser ela a inspirada Palavra de Deus. Através de todo o Velho
Testamento os escritores inspirados reivindicam esta autoridade, declarando
constantemente que Deus não somente age, mas é também um Deus que fala. Assim é
que encontramos no VT, 361 vezes a expressão "diz o Senhor" (ne’um-YHWH; em
inglês: the utterance of the Lord) que insiste, em cada caso, no fato da declaração ser
feita por um Deus e não pelo homem. Outra expressão que insiste na autoridade
da Bíblia é a frase "assim diz o Senhor" (kōh >āmar YHWH), ou
variações dela, que aparece 445 vezes. O substantivo dābār, "palavra", e as
combinações que têm o significado de "Palavra de Deus", como uma
comunicação
divina na forma de mandamentos, profecia
e palavras de auxílio, aparece cerca de 540 vezes. Todas estas
expressões mostram os reclamos que o VT faz da sua autoridade. Se investigarmos
os usos que a Bíblia faz destas expressões, notaremos que através de todo o VT
Deus Se comunicou com Seu povo por meio de servos Seus inspirados, de tal
maneira que os destinatários das mensagens tinham plena consciência de que era
Deus Quem falava com eles e não o instrumento humano. O próprio Cristo aceitou
a Bíblia, o VT, como uma autoridade indiscutível (S. Mat. 5:17-19; S. Luc.
10:25-28; 16:19-31).
A autoridade do NT repousa também na sua inspiração
divina e na mensagem e pessoa de Jesus Cristo que é, Ele mesmo, a fonte do
conhecimento perfeito de Deus. "O Filho unigênito ... Esse O fez
conhecer" (S. João 1:18, AA). "Havendo Deus, outrora, falado muitas
vezes, e de muitas maneiras aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos
falou pelo Filho" (Heb. 1:1, 2). É imperativo que se reconheça no
NT a autoridade tanto da Palavra visível (S. João 1:1, 14; Apoc. 19:13) como
da audível (S. Mat. 15:6; Luc. 5:1; S. João 10:35; Atos 4:31; Rom. 9:6; 1
Tess. 2:13), porque ambas são "a palavra de Deus" (1 Tess. 2:13).
Este paralelismo entre a autoridade de Jesus e a palavra, continua se
verificando de inúmeras maneiras. A salvação se encontra em Jesus (Atos
4:12; 2 Tim. 2:10; Heb. 2:10; 5:9) e na palavra (Atos 13:26, cf. Ef. 1:13); a
vida está em Jesus (S. João 1:4; 10:10; 28; 11:25; 14:6; Atos 3:15; 1 João
5:12, 20) e na palavra (S. João 5:24; Atos 5:20; Fil. 2:16); a graça está
em Jesus (S. João 1:14; Atos 15:11; Rom. 1:5; etc.) e na palavra (Atos 14:3,
20:24, 32); o poder está em Jesus (1 Cor. 5:4; 2 Pe. 1:16) e também na
palavra (Rom. 1:15; 1 Cor. 1:18; Heb. 1:3); a reconciliação está
em Jesus" (Rom. 5:11; 2 Cor. 5:18 s.) e na palavra (2 Cor. 5:19), a
verdade está em Jesus (S, João 1:14; 2 Cor. 11:10; Ef. 4:21) e na palavra
(2 Cor. 6:7; Ef. 1:13; Col. l:5; Tiago 1:18); Jesus é, Ele mesmo, a verdade (S.
João 14:6) como o é também Sua palavra (S. João 17:17). Assim como Jesus está
vivo (S. Luc. 24:5; S. João 6:51, 57; 14:19), é fiel (1 Tess. 5:24; 2 Tess.
3:3; Heb. 3:2; etc.) e é verdadeiro (S. Interpretação Bíblica: Princípios
Gerais 9
João 7:18; Apoc.3:7, 14; 6:10; 19:11),
assim também a palavra está viva (Atos 7:38; Heb. 4:12; 1 Pe. 1:21), e fiel (1
Tim. 1:15; 3:1; 4:9; Tito 1:9; 3:8; Apoc. 21:5; 22:6) e é verdadeira (Apoc.
19:9; 21:5; 22:6). Esta lista parcial indica que a palavra inspirada leva
consigo toda a autoridade de Jesus. A autoridade da Bíblia repousa,
portanto, na autoridade máxima de Deus falando através de Sua auto-revelação
única em atos, em palavras e em Jesus Cristo, a Palavra encarnada, cuja
mensagem passou para o NT.
A revelação divina corporificada na Bíblia possui uma
autoridade superior a de qualquer outra fonte de conhecimento de Deus (p. ex.,
o livro da natureza). Um tal reconhecimento tem implicações definidas no que
diz respeito à interpretação bíblica. A natureza da inspiração e autoridade
bíblica exige que a Escritura seja tida como "infalível norma"9 pela qual
as idéias humanas, seja no campo da filosofia, da ciência, da história ou da
tradição, sejam provadas. "As Santas Escrituras devem ser aceitas como
autorizada e infalível revelação da Sua vontade" (GC, 9). A unicidade da
Bíblia requer que seja interpretada por princípios que se harmonizem com sua
autoria divina e com a dimensão humana. O próprio reconhecimento da natureza da
Bíblia como a Palavra de Deus escrita em linguagem humana exige que não seja
interpretada através de recursos externos como tradição, filosofia, ciência,
religiões não bíblicas, etc., mas que se lhe permita funcionar como seu próprio
interprete.
3. A Unidade da Bíblia e a Interpretação
A unidade da Bíblia nos dois Testamentos tem sua
origem na certeza de que ambos são inspirados pelo mesmo Espírito Santo. A
unidade e continuidade dentro dos Testamentos e entre os Testamentos são
manifestas porque a existência de ambos os Testamentos é obra do Deus triúno.
Logo no seu começo a carta aos Hebreus insiste neste fato: "Muitas vezes e
de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais, nos
profetas; nestes últimos tempos, falou a
nós no Filho, a Quem conferiu o domínio de todas as coisas, tendo também por
meio dEle criado o Universo" (Heb. 1:1, 2, PIB). Esta unidade é aqui
enfatizada porque o mesmo Pai que falou no passado através dos profetas, falou
agora, também, através do Filho. Ao mesmo tempo, temos aqui a indicação de que
existe diversidade dentro da unidade. Deus falou "de muitos modos",
durante um longo período, usando indivíduos inspirados diferentes e em estágios
sucessivos.
O intérprete cuidadoso da Bíblia evita a prática tão
disseminada de enfatizar está diversidade a tal ponto que destrói a unidade
interna e subjacente da Escritura. Entre as muitas causas desta diversidade
figuram a experiência do profeta, sua educação, o meio em que viveu, sua
linguagem e sua percepção da verdade, porque Deus o inspirou com pensamentos divinos e ele,
por sua vez, colocou-os fielmente em linguagem humana11 "assim
as declarações do homem são a Palavra de Deus". "Essa
diversidade", explica E.G. White, "amplia e aprofunda o conhecimento
que vem satisfazer as necessidades dos variados espíritos". De fato,
existe necessidade de acentuar a diversidade dos temas e dos aspectos dos temas
desdobrados pelos diversos escritores inspirados que contribuíram todos eles
para a revelação total em ambos os Testamentos. Embora exista na Bíblia uma
diversidade, existe nela também uma unidade (1 Cor. 12:4-6). As mensagens dos
diferentes escritores bíblicos pertencem-se tão intimamente, que nenhuma delas
pode ser completamente compreendida sem o auxílio da outra, assim como o Velho
Testamento não pode ser completamente entendido sem o Novo e o Novo não o pode,
também, sem o Velho. Ambos os Testamentos formam um todo inseparável, um
dependendo do outro e um iluminando o outro.
Um exemplo desta unidade é a ligação histórica que
existe entre os Testamentos, ambos apresentando uma história contínua do povo
de Deus. O Israel espiritual está em ligação direta de continuidade com o
Israel literal, e tem os mesmos
propósitos e alvos dum mundo evangelizado e duma redenção divina. Cada um dos
maiores temas do VT encontra sua resposta e resumo no NT, ou continua neles.
Dificilmente existe uma palavra teológica chave usada pelo VT que não seja
também usada ou enriquecida pelo NT. Pessoas, instituições e acontecimentos do
VT encontram seu complemento típico no NT. Um exemplo significativo de unidade
é o arco de promessas preditas e cumpridas que existe dentro do VT e entre o VT
e NT. O cumprimento destas promessas no NT não implica no fato do VT estar
superado ou precisar ser marginalizado.
O próprio NT contém promessas e
predições que estão presentemente em processo de cumprimento e outras tantas
que olham para a volta de Jesus Cristo e para o eschaton final. A
unidade entre os Testamentos é, pois, uma unidade devida à sua origem comum em
Deus, em Jesus Cristo, e na inspiração pelo Espírito Santo, à perspectiva, plano
e propósito comuns para os homens, e à continuação da atividade divina para pôr
em execução a realização antecipada do seu plano de salvação.
Um corolário da unidade da Bíblia e a analogia da fé.
A expressão "analogia da fé" deriva da frase de Paulo, "segundo
a proporção da fé" (Rom. 12:6) que contêm as palavras gregas, analogian
tēs pisteōs. Usamos o conceito de analogia da fé para exprimir a idéia duma
subjacente "unidade espiritual, um grande fio de ouro através do todo [a
Bíblia]", baseando-nos no fato de que existe uma concordância
fundamental no pensamento, no ensino e na doutrina que pode ser revelada com o
auxílio do princípio hermenêutico de auto-interpretação da Escritura. Isto
significa que Deus, como Autor da Bíblia, viu o fim desde o princípio, previu o
futuro como escritor inspirado algum poderia prever e este, pelas palavras da
Escritura, tomou conhecimento dele (do futuro). As palavras inspiradas da
Bíblia não devem ser compreendidas meramente como palavras de homens
condicionados à linguagem, formas de pensamento e padrões literários dos tempos
e lugares a que pertenciam quando escreveram os documentos que compõem o cânon
da
Escritura. Embora Deus tivesse falado às
gerações de então através dos escritores dos livros bíblicos, Ele tomou
providencias para que o leitor da Palavra de Deus em gerações futuras pudesse
nela encontrar um conjunto de pensamentos, ensinos e doutrinas que fosse além
das circunstâncias locais e limitadas durante as quais estes livros foram
produzidos.
Como porta-vozes de Deus, os profetas não só falaram
para o seu próprio tempo, mas também predisseram acontecimentos que se deveriam
verificar em futuro distante (1 Pe. 1:10-12). "Os profetas", eles
mesmos "anelavam compreender" o significado das palavras que
anunciavam.19 Deve, pois, existir um significado mais profundo e uma
implicação mais completa nas palavras inspiradas da Escritura,20 significado
e implicação que, devido às suas origens divinas, podem apenas ser descobertos
através de outras passagens que tratem do mesmo assunto. Assim, pois, a Bíblia
deve ser vista como sendo seu próprio expositor.
III.
O Princípio de “Só a Bíblia”
1. O Princípio de “Sola Scriptura”
O
princípio protestante de "só a Bíblia" foi o grito de batalha da
Reforma. Ele envolve a suprema autoridade da infalível Santa Escritura,
excluindo-se toda a autoridade humana, e insiste no fato de que só "elas
são a norma do caráter, o revelador das doutrinas, a pedra de toque da
experiência religiosa" (GC, 9-10). Ele se baseia no reconhecimento da
inspiração da Bíblia, da sua unidade, canonicidade e suprema autoridade. E. G.
White dá ênfase ao fato de que nós não devemos ter outro credo que não o da
infalível Escritura de Deus: "A Bíblia [é] nossa regra de fé e
disciplina." Ela salientou o fato de que nestes últimos dias "Deus
terá
sobre a Terra um povo que mantenha a
Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as
reformas". Os adventistas do sétimo dia esforçaram-se
persistentemente para não permitir que tradições, credos, ciência, filosofia,
religiões não bíblicas, etc., nem uma e nem todas, determinassem assuntos de
fé, doutrina e reformas, e tomam a Bíblia como "suprema autoridade" nestes
assuntos.
O
seguinte apelo de E. G. White nos anima a continuar com esta ênfase: "Em
nosso tempo ..., há necessidade de uma volta ao grande princípio protestante —
a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e pratica". A posição
coerente dos que representam a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem sido a de
que a Bíblia é nossa única e infalível regra de fé, doutrina, reforma e
pratica.
2. O Princípio de "Só a Bíblia" e E. G.
White
A ênfase que damos ao princípio de "só a
Bíblia" requer alguns esclarecimentos com respeito ao lugar e propósito
dos escritos de E. G. White. Entre os adventistas do sétimo dia aceita-se
geralmente o fato do Espírito Santo ter inspirado os escritos de E. G. White da
mesma maneira que inspirou os profetas bíblicos. Contudo, os escritos
inspirados da mensageira de Deus para a Igreja Adventista não substituem a
Bíblia,26 nem são qualquer acréscimo ao cânon da Escritura. A
própria E. G. White sustenta que a Bíblia é "a prova de toda a
inspiração" e "a pedra de toque da experiência
religiosa." Com respeito à relação que existe entre os seus
escritos e a suprema autoridade da Bíblia, E. G. White afirmou explicitamente o
seguinte: "Pouca atenção se deu à Bíblia, e o Senhor deu uma luz menor
para conduzir os homens e mulheres a uma luz maior." Sendo que
seus escritos são tão inspirados como os da Escritura, são eles, como esta,
também uma luz, mas não um acréscimo à Escritura, nem estão acima dela e nem
são iguais a ela. O propósito dos testemunhos inspirados de
E. G. White é, pois, dirigir o povo para
a luz maior da Escritura e impressionar as mentes humanas com a sua
importância.
Considerando a inspiração dos escritos de E. G. White,
os adventistas do sétimo dia afirmam corretamente que eles têm uma autoridade
superior a de outros escritos, excetuando unicamente a Escritura. Contudo, isto
não significa que seus escritos tenham primazia sobre a Bíblia. Seus escritos
têm um papel subordinado ao da Escritura e visam dar uma compreensão mais clara
dela, exaltá-la, atrair as mentes para ela, chamar
atenção para verdades negligenciadas, fixar verdades inspiradas já reveladas, despertar e
impressionar as mentes, trazer o povo de volta à Bíblia, chamar
atenção para os princípios bíblicos, e aplicá-los à vida pratica. Não
surpreende, pois, que os escritos de E. G. White tenham um lugar especialmente
honrado junto aos adventistas do sétimo dia porque representam um comentário
inspirado sobre a Escritura e explicam sua aplicação à vida. Contudo, E. G.
White insiste no fato de que eles "não foram dados para substituir a
Bíblia", nem constituem "um acrescentamento à Palavra de Deus". Em virtude
deste lugar ocupado por E. G. White entre os adventistas do sétimo dia, seus
escritos inspirados são uma fonte constante de informação e orientação na
interpretação da Bíblia. O exegeta cuidadoso consultará constantemente seus
comentários inspirados sobre a Escritura.
IV. O Princípio de "A
Escritura Como Sua Própria Intérprete"
O princípio de "só a Bíblia" tem um
corolário bem conhecido que é o princípio de "A Escritura Como Sua Própria
Interprete". O princípio de "só a Bíblia (sola Scriptura)"
é a afirmação formal de que a Bíblia se explica por si mesma.
O próprio Jesus Cristo, o Exemplo do crente (1 Pe
2:21), aplicou este princípio quando, começando com os escritos de Moisés e
continuando por todo o resto do VT, "explicava-lhes [aos discípulos] o que
dEle se achava em todas as Escrituras" (S. Luc. 24:27, AA). O
Apóstolo S. Paulo recomendou que devemos
sempre ir "comparando41 as coisas espirituais com as espirituais" (1 Cor.
2:13, AA). A ideia parece ser a de explicar e interpretar as coisas ou verdades
espirituais, baseando-nos na inspirada Palavra de Deus. A injunção de Pedro é
"que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal" (2 Pe.
1:20, CBC). A palavra "profecia" tal qual é usada pela Escritura, não
se limita às profecias preditivas, aquelas que predizem os acontecimentos
futuros, mas se aplica a qualquer declaração inspirada.
E. G. White repete insistentemente o fato de que
"a Bíblia explica-se por si mesma." O mesmo pensamento, redigido
um pouco diferente, diz que devemos tomar as "Escrituras como seu próprio
intérprete." A aplicação hermenêutica deste princípio significa que
"texto explica texto, sendo uma passagem a chave de outras passagens.
A constante admoestação, "Fazei da Bíblia seu
próprio expositor,"47 vem do reconhecimento completo do princípio de
auto-interpretação da Escritura, tal como foi mantido pelos reformadores. U.
Zuínglio "viu que ela [a Bíblia, como Palavra de Deus, única regra
suficiente, infalível] deveria ser seu próprio intérprete." Este
princípio de "fazer as Escrituras o seu próprio interprete" foi
aplicado também por G. Miller, e foi seguido pelos adventistas que mantêm
"a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas
as reformas." Baseando-se numa aplicação própria deste princípio,
Ellen G. White sustenta que "as opiniões de homens ilustrados, as deduções
da ciência, os credos ou decisões dos concílios eclesiásticos, tão numerosos e
discordantes como são as igrejas que representam, a voz da maioria — nenhuma
destas coisas, nem todas em conjunto, deveriam considerar-se como prova, em
favor ou contra qualquer ponto de fé religiosa."51 Está
claro, portanto, que a interpretação bíblica entre os adventistas do sétimo dia
se fundamenta no princípio da Reforma que afirma ser "a Escritura seu
próprio intérprete (Scriptura sui ipsius interpres)".
Ver na "a Escritura seu próprio intérprete",
importa em reconhecer que a Bíblia precisa ser interpretada dentro dela mesma.
Significa que
uma parte da Escritura interpreta a
outra.52 O velho e o Novo Testamentos lançam luz um sobre o
outro. "A lei [que faz parte do VT] é o evangelho
consubstanciado, e o evangelho [o NT] é a lei [o VT] é desdobrada." O VT é a
chave que descerra o NT55 e, vice-versa, o evangelho do NT é a chave que
desvenda os mistérios, os tipos e sombras,57 do VT. Ambos os Testa
mentos são igualmente essenciais,58 porque ambos participam de sua mútua interpretação. A
revelação da Escritura não deve ser interpretada à luz de conhecimentos obtidos
através de qualquer fonte (p. ex., tradição da história eclesiástica,
filosofia, ciência, religiões não bíblicas, etc.), cuja autoridade seja
considerada como sendo igual ou estando acima da Escritura, mas sim à sua
própria luz e fundamentando-se no seu próprio contexto canônico.
O princípio de auto-interpretação da Escritura —
"a Escritura seu próprio intérprete" — refuta o conceito de que
qualquer homem seja o intérprete dela, alinhavando indiscriminadamente juntos
textos que sirvam à conveniência dos seus próprios caprichos. Assim como o VT
interpreta o Novo e o Novo o Velho, como uma porção da Escritura interpreta a
outra, assim também uma passagem da Escritura serve de chave para outras.59 Em sua
aplicação geral, isto indica que uma passagem que serve de chave para outras
deve ser clara, e que estas outras passagens da Escritura necessitam de
interpretação devido a certos graus de obscuridade que possuem. As passagens
difíceis devem ser interpretadas com o auxílio de textos que sejam claros.
Uma passagem difícil ou obscura não deve ser
interpretada pela aplicação indiscriminada de qualquer outro texto ou passagem
bíblicos. Existem amplas evidências de que um tal procedimento leva apenas à
confusão e à contradição." No processo de auto-interpretação da Escritura,
comparando e interpretando passagem com passagem e texto com texto, é preciso
que o estudioso se guie apenas pelas passagens ou textos que tratam do mesmo
assunto. Observando o sentido das passagens e textos que tratam
do mesmo assunto sob vários ângulos, o
intérprete da Escritura pode aguardar
sua chegada ao verdadeiro significado da Bíblia e ver a luz brilhando sobre
significados ocultos.
No processo de deixar a Escritura interpretar a
Escritura, quando se analisa um conjunto de vários textos e passagens que
tratam do mesmo assunto, e preciso não restringir o estudo destes textos e
passagens apenas aos que se referem a mesma época ou período histórico, e as
mesmas circunstâncias. Esta é uma tentação que sempre se apresenta sob a
influência das consequências do criticismo histórico com sua ênfase sobre o
caráter completamente humano dos documentos bíblicos. Permitindo
que a Escritura seja seu próprio interprete, quem se empenha na interpretação
bíblica fará o possível, dentro do melhor das suas capacidades, para reunir
tudo o que e dito sobre um determinado assunto, tirando este material de épocas
e circunstancias diferentes. Embora se insista veementemente para que as diversas
passagens que tratam do mesmo assunto sejam comparadas e estudadas em
conjunto, apenas se pode esperar que o verdadeiro significado da Escritura
esteja de acordo com a plenitude da revelação da Bíblia quando as passagens
reunidas pertencerem a vários autores e ao maior número possível de épocas e
circunstâncias. Este procedimento se justifica quando se tomar por base a
dimensão da Escritura como inspirada Palavra de Deus, porque esta, sendo
adequadamente usada, não faz injustiça aos vários aspectos dum tema apresentado
por escritores inspirados diferentes.
V.
Objetividade e Interpretação
Todos quantos se empenham numa interpretação já têm,
voluntária ou involuntariamente, uma certa pré-compreensão do assunto. É um
truísmo bem conhecido que não existe uma objetividade absoluta. O intérprete
sofre a tentação constante de dar as palavras dos escritores opiniões e
significados que eles não queriam expressar. Para evitar que isto aconteça, já
se propôs a aplicação do princípio da "cabeça vazia", segundo o qual
não se deve "ler para dentro" o texto (eisegesis), i.e., não
se deve ler o que não está no texto. De
acordo com este princípio — o da "cabeça vazia" — se deve abandonar
toda a noção e opinião preconcebida e abordar o texto de uma maneira
completamente neutra, e assim se empenhar na interpretação bíblica. Não é isto
pedir o impossível? Se o intérprete conhece as línguas bíblicas, por exemplo,
sem dúvida que aprendeu o significado das palavras e conseguiu absorver uma
compreensão de gramática e sintaxe que foi trabalho de várias gerações. Ninguém
consegue despojar-se desta "bagagem". O princípio da "cabeça
vazia" dificilmente pode ser advogado, porque quanto menos cultivado for o
conhecimento e a compreensão do intérprete, quanto menos formados forem seu
juízo e sua inteligência, maior é a possibilidade dele dar às palavras, ao
texto ou ao livro, um significado que lhes seja alheio. Inversamente, quanto
mais geral e variada for a experiência do tradutor, quanto mais profundo e
amplo for o desenvolvimento de sua compreensão, quanto mais detalhado for seu
conhecimento do ambiente cultural da obra que vai interpretar, maior é a
esperança de que seus julgamentos sejam mais equilibrados, e de que ele consiga
descobrir o verdadeiro significado do texto.
Todo tradutor deve trabalhar compreendendo
perfeitamente a necessidade absoluta de ser tão objetivo quanto possível.
Precisa fazer um esforço consciente para, cada vez mais se aperceber das suas
próprias pré-compreensão e pressuposições, e procurar controlar, quanto
possível, suas próprias preferências. Se deseja conseguir o verdadeiro
conhecimento, precisa silenciar sua própria subjetividade dentro do melhor das
suas capacidades. Estes requisitos fazem bom senso enquanto forem tomados no
sentido de que o tradutor deve silenciar seus desejos pessoais naquilo que diz
respeito ao resultado da tradução.
O intérprete tradutor precisa dar-se conta de que não
pode esperar um aumento da sua capacidade de compreender a Escritura através de
qualquer esforço consciente que faça visando assegurar para si mesmo um ponto
de vista neutro e nem mesmo um que se harmonize com a Escritura, mas deve saber
que pode consegui-lo através de uma Interpretação Bíblica: Princípios Gerais 19
adaptação da mente, do coração e da
compreensão completa da vida ao que ouve de Deus através da própria Escritura.
É o próprio Deus Quem, através da Bíblia e do Espírito Santo, cria no
intérprete as pressuposições necessárias e as perspectivas essenciais para a
compreensão da Escritura. Na Bíblia nos defrontamos com uma compreensão de
Deus, de nós mesmos, dos nossos semelhantes e do mundo que nos cerca, que é
única e que não pode ser conhecida através de qualquer outra fonte. É devido à
unicidade absoluta da Bíblia que a revelação da Escritura precisa comunicar não
só o seu conteúdo, mas também a possibilidade de recebê-lo, de modo que, usar
qualquer conhecimento obtido de outras quaisquer fontes como base para
compreender sua mensagem, resultará apenas na má compreensão dela.65 Para
interpretar a Bíblia é necessária uma iluminação constante do Espírito Santo.
A prática de empregar uma determinada filosofia (seja
aristotélica, hegeliana, idealista, existencialista, processo filosófico, etc.)
como requisito para ser usado na tarefa de interpretação e exegese, significa
sobrepor um elemento externo à Escritura que vai subordinar esta aos
pensamentos humanos. Isto significa que uma previa autocompreensão humana
obtida com base num preparo filosófico para a interpretação da Bíblia, resulta
sempre no estabelecimento dum critério para julgar a verdade bíblica e se
transforma num padrão que pretende ser superior à revelação divina. Ela, a
autocompreensão humana obtida através de fundamentos filosóficos, se transforma
numa autoridade final. É preciso reconhecer os resultados duma tal abordagem,
porque ela sacrifica a autoridade da Escritura e a submete à do homem. Doutro lado,
a subjetividade do homem é vencida quando o intérprete permite que Deus lhe
fale através do texto da Escritura, deixando que este o leve a uma relação com
Deus, relação que o fará conhecer a verdade como se tivesse aberto sua própria
vida à ação salvadora de Deus através de Jesus Cristo e ao poder iluminador do
Espírito Santo.
Baseando-se nestes fundamentos relativos à
interpretação bíblica, isto é, a natureza, unicidade, autoridade e unidade da
Bíblia, e buscando
o auxílio de corolários
hermenêuticos como "só a Bíblia" e "a Escritura, sua própria intérprete",
podemos reafirmar os objetivos desta inter-pretação bíblica. Eles, sendo
próprios e adequados, buscam, (1) determinar o que o escritor inspirado, como
instrumento escolhido de Deus, compreendia, ele mesmo, e o que queria comunicar
aos ouvintes e/ou leitores dos seus dias, (2) compreender e expor o significado
profundo e a implicação completa, intencionais ou implícitos, das palavras do
profeta, estivesse ele ou não consciente disto, e (3) traduzir e
transmitir tudo para o homem moderno.
Gerhard F. Hasel
Pr. Cirilo Gonçalves
Evangelista da IASD - AP, SP
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