terça-feira, 2 de setembro de 2014

HERMENEUTICA BÍBLICA - FUNDAMENTOS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


A. Fundamentos da Interpretação Bíblica 

I. Necessidade e Objetivos da Interpretação Bíblica

1. Necessidade da Interpretação Bíblica

As evidências bíblicas internas mostram que os documentos inspirados que compõe a Bíblia tem necessidade de interpretação. O Evangelho de São Lucas registra que o Senhor Jesus Cristo ressuscitado "explicava-lhes" (diermeneuo = interpretar), — aos discípulos que se dirigiam para Emaús – "o que dEle se achava em todas as Escrituras" (S. Luc. 24:27, AA). O próprio Senhor Jesus reconhecia, portanto, que era necessário explicar, interpretar, a Bíblia dos Seus dias, i.e., o Velho Testamento. A interpretação da Bíblia requer uma abordagem reverente e com fé, aliada a um esforço deliberado e extremamente cuidadoso. Paulo ordena a Timóteo que apresente a verdade correta e exatamente, manejando-a com grande cuidado: "Procura apresentar-te a Deus, aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade" (2 Tim. 2:15); a RVS traduz rightly handling (manejando corretamente). Existe o perigo de falsificar e corromper a mensagem de Deus (2 Cor. 2:17), e isto pode ser evitado, usando princípios sadios de interpretação bíblica ao se manusear a mensagem da verdade, tudo fazendo sob a direção iluminadora do Espírito Santo,

A necessidade de interpretação da Bíblia surge por causa dos problemas da distância da nossa situação, cultura, tempo e lugar em relação aos escritores bíblicos. A primeira barreira que o intérprete precisa vencer é a da língua. O Velho Testamento foi escrito em duas línguas semíticas, o hebraico e o aramaico, e o Novo Testamento numa língua indo-européia, o grego. Portanto, para que a Bíblia seja entendida hoje, é preciso traduzi-la, e isto envolve problemas de interpretação da Escritura.

Nossos costumes de hoje dificilmente são os dos tempos bíblicos. Até recentemente os interpretes não tinham qualquer possibilidade de explicar porque o misterioso Eliézer de Damasco aparece como herdeiro de Abraão antes do nascimento de Isaque (Gên. 15:2 s.). Hoje, porém, de posse dos antigos textos de Nuzu, sabe-se que, de acordo com uma prática legal dos tempos patriarcais, a propriedade era inalienável, e se usava, então, o costume de herdeiros adotivos. Um casal sem filhos podia adotar alguém de fora para ser seu herdeiro, pratica da época, muito bem confirmada por documentos que temos dos anos ca. 2000-1500 AC. Tal herdeiro passava para segundo lugar no caso de vir algum primogênito. A estranha história do roubo dos "ídolos do lar" ou terafins, praticado por Raquel (Gen. 31:34), pode hoje ser compreendida graças a uma lei encontrada entre os textos de Nuzu e que dizia que "a posse de tais ídolos pela esposa garantia para seu marido a sucessão na propriedade do sogro." Foi por isto que Labão, após ter perseguido Jacó e seus do mestiços e depois de ter procurado estes ídolos sem qualquer êxito, tratou rapidamente de garantir o direito de herança para seus filhos, mediante um concerto com Jacó, obrigando-se ambos a não cruzar determinada fronteira na qual concordaram (Gên. 31:48-54). Por motivos e razões semelhantes, conhecemos hoje muitos costumes que eram desconhecidos até bem pouco tempo.

A maneira ocidental de pensar não é necessariamente a dos escritores da Bíblia. No ocidente o pensamento humano sofreu a influência da lógica e da filosofia gregas. Não se encontra no VT um exemplo sequer de lógica grega, i. e., um silogismo que analise um argumento formal, baseando-se na proposição duma premissa maior e doutra menor que, se verdadeiras, levam à conclusão de que determinado fato é verdadeiro. O tipo de lógica que se encontra no VT baseia-se na experiência e não no raciocínio dedutivo. A diferença entre os pensamentos hebraico e grego5 não deve levar à conclusão errada de que, pelo fato dos escritores da Bíblia terem vivido num mundo de pensamento diverso da cultura e do pensamento ocidentais modernos,

nossa cultura e pensamento sejam superiores e a deles inferiores, irrelevantes ou sem qualquer significado. Estas noções — erradas precisam ser combatidas com todo o vigor.  

2. Objetivo da Interpretação Bíblica

A natureza da Bíblia como corporificação do propósito divinamente revelado para os homens de todos os tempos e de todas as raças, dita os objetivos básicos que devem ser observados por tradutores e interpretes da Escritura.

Uma interpretação bíblica própria e adequada busca (1) determinar o que o escritor bíblico inspirado, como instrumento escolhido de Deus, compreendia, ele mesmo, e queria comunicar para os ouvintes e/ou leitores do seu tempo; (2) compreender e expor a implicação completa e o significado profundo, intencionado ou explícito, das palavras dos profetas, e se ele mesmo estava ou não cônscio disto; e (3) traduzir e transmitir a forma e o conteúdo da verdade bíblica para o homem moderno. Nossa era duma sociedade tecnológica secularizada e duma cultura que a acompanha, aumenta o abismo que há entre o mundo bíblico e o nosso, colocando um peso cada vez maior sobre os objetivos básicos da interpretação bíblica.

II. A Unicidade da Bíblia e da Interpretação

1. O Autor Divino e os Escritores Humanos

A unicidade da Bíblia resulta da sua origem divina e da dimensão humana. A origem divina é atestada pelo testemunho de que "a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo" (2 Pe. 1:21, AA). Paulo dá ênfase ao fato de que "toda Escritura e inspirada por Deus (theopneutos, 2 Tim. 3:16). Isto significa que, no seu mais verdadeiro sentido, ela tem sua origem em Deus e, portanto, procede de Deus. Embora a origem divina da Bíblia seja o fato mais básico e a realidade mais fundamental da fé cristã, a auto-revelação de Deus tal como está contida na Escritura, chegou até nós através da linguagem humana de homens inspirados que apontam para a dimensão humana. A Bíblia tem Deus como seu autor, mas chegou até nós com as dimensões humanas da sua linguagem e dos característicos peculiares dos seus escritores. Esta dupla dimensão da Bíblia, a sua origem divina e os seus aspectos humanos, é determinante e decisiva para o desenvolvimento de princípios sadios e adequados de interpretação bíblica. Baseando-se nesta dimensão dupla, o intérprete da Bíblia tem necessidade de se preocupar com o conhecimento da intenção das palavras usadas pelo escritor humano inspirado, do significado que elas tinham para o povo dos seus dias, e do significado que o divino Autor lhe queria dar através destas palavras. É preciso cuidar muito para não subestimar cada uma destas dimensões. A Bíblia não deve ser manuseada como se fosse um simples livro humano, porque "apresenta uma união do divino com o humano" (GC, 9).

2. A Autoridade da Bíblia e da Interpretação

A autoridade da Bíblia repousa sobre o fato excepcional de ser ela a inspirada Palavra de Deus. Através de todo o Velho Testamento os escritores inspirados reivindicam esta autoridade, declarando constantemente que Deus não somente age, mas é também um Deus que fala. Assim é que encontramos no VT, 361 vezes a expressão "diz o Senhor" (ne’um-YHWH; em inglês: the utterance of the Lord) que insiste, em cada caso, no fato da declaração ser feita por um Deus e não pelo homem. Outra expressão que insiste na autoridade da Bíblia é a frase "assim diz o Senhor" (kōh >āmar YHWH), ou variações dela, que aparece 445 vezes. O substantivo dābār, "palavra", e as combinações que têm o significado de "Palavra de Deus", como uma comunicação

divina na forma de mandamentos, profecia e palavras de auxílio, aparece cerca de 540 vezes. Todas estas expressões mostram os reclamos que o VT faz da sua autoridade. Se investigarmos os usos que a Bíblia faz destas expressões, notaremos que através de todo o VT Deus Se comunicou com Seu povo por meio de servos Seus inspirados, de tal maneira que os destinatários das mensagens tinham plena consciência de que era Deus Quem falava com eles e não o instrumento humano. O próprio Cristo aceitou a Bíblia, o VT, como uma autoridade indiscutível (S. Mat. 5:17-19; S. Luc. 10:25-28; 16:19-31).

A autoridade do NT repousa também na sua inspiração divina e na mensagem e pessoa de Jesus Cristo que é, Ele mesmo, a fonte do conhecimento perfeito de Deus. "O Filho unigênito ... Esse O fez conhecer" (S. João 1:18, AA). "Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho" (Heb. 1:1, 2). É imperativo que se reconheça no NT a autoridade tanto da Palavra visível (S. João 1:1, 14; Apoc. 19:13) como da audível (S. Mat. 15:6; Luc. 5:1; S. João 10:35; Atos 4:31; Rom. 9:6; 1 Tess. 2:13), porque ambas são "a palavra de Deus" (1 Tess. 2:13). Este paralelismo entre a autoridade de Jesus e a palavra, continua se verificando de inúmeras maneiras. A salvação se encontra em Jesus (Atos 4:12; 2 Tim. 2:10; Heb. 2:10; 5:9) e na palavra (Atos 13:26, cf. Ef. 1:13); a vida está em Jesus (S. João 1:4; 10:10; 28; 11:25; 14:6; Atos 3:15; 1 João 5:12, 20) e na palavra (S. João 5:24; Atos 5:20; Fil. 2:16); a graça está em Jesus (S. João 1:14; Atos 15:11; Rom. 1:5; etc.) e na palavra (Atos 14:3, 20:24, 32); o poder está em Jesus (1 Cor. 5:4; 2 Pe. 1:16) e também na palavra (Rom. 1:15; 1 Cor. 1:18; Heb. 1:3); a reconciliação está em Jesus" (Rom. 5:11; 2 Cor. 5:18 s.) e na palavra (2 Cor. 5:19), a verdade está em Jesus (S, João 1:14; 2 Cor. 11:10; Ef. 4:21) e na palavra (2 Cor. 6:7; Ef. 1:13; Col. l:5; Tiago 1:18); Jesus é, Ele mesmo, a verdade (S. João 14:6) como o é também Sua palavra (S. João 17:17). Assim como Jesus está vivo (S. Luc. 24:5; S. João 6:51, 57; 14:19), é fiel (1 Tess. 5:24; 2 Tess. 3:3; Heb. 3:2; etc.) e é verdadeiro (S. Interpretação Bíblica: Princípios Gerais 9

João 7:18; Apoc.3:7, 14; 6:10; 19:11), assim também a palavra está viva (Atos 7:38; Heb. 4:12; 1 Pe. 1:21), e fiel (1 Tim. 1:15; 3:1; 4:9; Tito 1:9; 3:8; Apoc. 21:5; 22:6) e é verdadeira (Apoc. 19:9; 21:5; 22:6). Esta lista parcial indica que a palavra inspirada leva consigo toda a autoridade de Jesus. A autoridade da Bíblia repousa, portanto, na autoridade máxima de Deus falando através de Sua auto-revelação única em atos, em palavras e em Jesus Cristo, a Palavra encarnada, cuja mensagem passou para o NT.

A revelação divina corporificada na Bíblia possui uma autoridade superior a de qualquer outra fonte de conhecimento de Deus (p. ex., o livro da natureza). Um tal reconhecimento tem implicações definidas no que diz respeito à interpretação bíblica. A natureza da inspiração e autoridade bíblica exige que a Escritura seja tida como "infalível norma"9 pela qual as idéias humanas, seja no campo da filosofia, da ciência, da história ou da tradição, sejam provadas. "As Santas Escrituras devem ser aceitas como autorizada e infalível revelação da Sua vontade" (GC, 9). A unicidade da Bíblia requer que seja interpretada por princípios que se harmonizem com sua autoria divina e com a dimensão humana. O próprio reconhecimento da natureza da Bíblia como a Palavra de Deus escrita em linguagem humana exige que não seja interpretada através de recursos externos como tradição, filosofia, ciência, religiões não bíblicas, etc., mas que se lhe permita funcionar como seu próprio interprete.

3. A Unidade da Bíblia e a Interpretação

A unidade da Bíblia nos dois Testamentos tem sua origem na certeza de que ambos são inspirados pelo mesmo Espírito Santo. A unidade e continuidade dentro dos Testamentos e entre os Testamentos são manifestas porque a existência de ambos os Testamentos é obra do Deus triúno. Logo no seu começo a carta aos Hebreus insiste neste fato: "Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais, nos

profetas; nestes últimos tempos, falou a nós no Filho, a Quem conferiu o domínio de todas as coisas, tendo também por meio dEle criado o Universo" (Heb. 1:1, 2, PIB). Esta unidade é aqui enfatizada porque o mesmo Pai que falou no passado através dos profetas, falou agora, também, através do Filho. Ao mesmo tempo, temos aqui a indicação de que existe diversidade dentro da unidade. Deus falou "de muitos modos", durante um longo período, usando indivíduos inspirados diferentes e em estágios sucessivos.

O intérprete cuidadoso da Bíblia evita a prática tão disseminada de enfatizar está diversidade a tal ponto que destrói a unidade interna e subjacente da Escritura. Entre as muitas causas desta diversidade figuram a experiência do profeta, sua educação, o meio em que viveu, sua linguagem e sua percepção da verdade, porque Deus o inspirou com pensamentos divinos e ele, por sua vez, colocou-os fielmente em linguagem humana11 "assim as declarações do homem são a Palavra de Deus". "Essa diversidade", explica E.G. White, "amplia e aprofunda o conhecimento que vem satisfazer as necessidades dos variados espíritos". De fato, existe necessidade de acentuar a diversidade dos temas e dos aspectos dos temas desdobrados pelos diversos escritores inspirados que contribuíram todos eles para a revelação total em ambos os Testamentos. Embora exista na Bíblia uma diversidade, existe nela também uma unidade (1 Cor. 12:4-6). As mensagens dos diferentes escritores bíblicos pertencem-se tão intimamente, que nenhuma delas pode ser completamente compreendida sem o auxílio da outra, assim como o Velho Testamento não pode ser completamente entendido sem o Novo e o Novo não o pode, também, sem o Velho. Ambos os Testamentos formam um todo inseparável, um dependendo do outro e um iluminando o outro.

Um exemplo desta unidade é a ligação histórica que existe entre os Testamentos, ambos apresentando uma história contínua do povo de Deus. O Israel espiritual está em ligação direta de continuidade com o

Israel literal, e tem os mesmos propósitos e alvos dum mundo evangelizado e duma redenção divina. Cada um dos maiores temas do VT encontra sua resposta e resumo no NT, ou continua neles. Dificilmente existe uma palavra teológica chave usada pelo VT que não seja também usada ou enriquecida pelo NT. Pessoas, instituições e acontecimentos do VT encontram seu complemento típico no NT. Um exemplo significativo de unidade é o arco de promessas preditas e cumpridas que existe dentro do VT e entre o VT e NT. O cumprimento destas promessas no NT não implica no fato do VT estar superado ou precisar ser marginalizado. O próprio NT contém promessas e predições que estão presentemente em processo de cumprimento e outras tantas que olham para a volta de Jesus Cristo e para o eschaton final. A unidade entre os Testamentos é, pois, uma unidade devida à sua origem comum em Deus, em Jesus Cristo, e na inspiração pelo Espírito Santo, à perspectiva, plano e propósito comuns para os homens, e à continuação da atividade divina para pôr em execução a realização antecipada do seu plano de salvação.

Um corolário da unidade da Bíblia e a analogia da fé. A expressão "analogia da fé" deriva da frase de Paulo, "segundo a proporção da fé" (Rom. 12:6) que contêm as palavras gregas, analogian tēs pisteōs. Usamos o conceito de analogia da fé para exprimir a idéia duma subjacente "unidade espiritual, um grande fio de ouro através do todo [a Bíblia]", baseando-nos no fato de que existe uma concordância fundamental no pensamento, no ensino e na doutrina que pode ser revelada com o auxílio do princípio hermenêutico de auto-interpretação da Escritura. Isto significa que Deus, como Autor da Bíblia, viu o fim desde o princípio, previu o futuro como escritor inspirado algum poderia prever e este, pelas palavras da Escritura, tomou conhecimento dele (do futuro). As palavras inspiradas da Bíblia não devem ser compreendidas meramente como palavras de homens condicionados à linguagem, formas de pensamento e padrões literários dos tempos e lugares a que pertenciam quando escreveram os documentos que compõem o cânon da

Escritura. Embora Deus tivesse falado às gerações de então através dos escritores dos livros bíblicos, Ele tomou providencias para que o leitor da Palavra de Deus em gerações futuras pudesse nela encontrar um conjunto de pensamentos, ensinos e doutrinas que fosse além das circunstâncias locais e limitadas durante as quais estes livros foram produzidos.

Como porta-vozes de Deus, os profetas não só falaram para o seu próprio tempo, mas também predisseram acontecimentos que se deveriam verificar em futuro distante (1 Pe. 1:10-12). "Os profetas", eles mesmos "anelavam compreender" o significado das palavras que anunciavam.19 Deve, pois, existir um significado mais profundo e uma implicação mais completa nas palavras inspiradas da Escritura,20 significado e implicação que, devido às suas origens divinas, podem apenas ser descobertos através de outras passagens que tratem do mesmo assunto. Assim, pois, a Bíblia deve ser vista como sendo seu próprio expositor.  

III. O Princípio de “Só a Bíblia”

1. O Princípio de “Sola Scriptura”

O princípio protestante de "só a Bíblia" foi o grito de batalha da Reforma. Ele envolve a suprema autoridade da infalível Santa Escritura, excluindo-se toda a autoridade humana, e insiste no fato de que só "elas são a norma do caráter, o revelador das doutrinas, a pedra de toque da experiência religiosa" (GC, 9-10). Ele se baseia no reconhecimento da inspiração da Bíblia, da sua unidade, canonicidade e suprema autoridade. E. G. White dá ênfase ao fato de que nós não devemos ter outro credo que não o da infalível Escritura de Deus: "A Bíblia [é] nossa regra de fé e disciplina." Ela salientou o fato de que nestes últimos dias "Deus terá

sobre a Terra um povo que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas". Os adventistas do sétimo dia esforçaram-se persistentemente para não permitir que tradições, credos, ciência, filosofia, religiões não bíblicas, etc., nem uma e nem todas, determinassem assuntos de fé, doutrina e reformas, e tomam a Bíblia como "suprema autoridade" nestes assuntos.

O seguinte apelo de E. G. White nos anima a continuar com esta ênfase: "Em nosso tempo ..., há necessidade de uma volta ao grande princípio protestante — a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e pratica". A posição coerente dos que representam a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem sido a de que a Bíblia é nossa única e infalível regra de fé, doutrina, reforma e pratica.  

2. O Princípio de "Só a Bíblia" e E. G. White

A ênfase que damos ao princípio de "só a Bíblia" requer alguns esclarecimentos com respeito ao lugar e propósito dos escritos de E. G. White. Entre os adventistas do sétimo dia aceita-se geralmente o fato do Espírito Santo ter inspirado os escritos de E. G. White da mesma maneira que inspirou os profetas bíblicos. Contudo, os escritos inspirados da mensageira de Deus para a Igreja Adventista não substituem a Bíblia,26 nem são qualquer acréscimo ao cânon da Escritura. A própria E. G. White sustenta que a Bíblia é "a prova de toda a inspiração" e "a pedra de toque da experiência religiosa." Com respeito à relação que existe entre os seus escritos e a suprema autoridade da Bíblia, E. G. White afirmou explicitamente o seguinte: "Pouca atenção se deu à Bíblia, e o Senhor deu uma luz menor para conduzir os homens e mulheres a uma luz maior." Sendo que seus escritos são tão inspirados como os da Escritura, são eles, como esta, também uma luz, mas não um acréscimo à Escritura, nem estão acima dela e nem são iguais a ela. O propósito dos testemunhos inspirados de

E. G. White é, pois, dirigir o povo para a luz maior da Escritura e impressionar as mentes humanas com a sua importância.

Considerando a inspiração dos escritos de E. G. White, os adventistas do sétimo dia afirmam corretamente que eles têm uma autoridade superior a de outros escritos, excetuando unicamente a Escritura. Contudo, isto não significa que seus escritos tenham primazia sobre a Bíblia. Seus escritos têm um papel subordinado ao da Escritura e visam dar uma compreensão mais clara dela, exaltá-la, atrair as mentes para ela, chamar atenção para verdades negligenciadas, fixar verdades inspiradas já reveladas, despertar e impressionar as mentes, trazer o povo de volta à Bíblia, chamar atenção para os princípios bíblicos, e aplicá-los à vida pratica. Não surpreende, pois, que os escritos de E. G. White tenham um lugar especialmente honrado junto aos adventistas do sétimo dia porque representam um comentário inspirado sobre a Escritura e explicam sua aplicação à vida. Contudo, E. G. White insiste no fato de que eles "não foram dados para substituir a Bíblia", nem constituem "um acrescentamento à Palavra de Deus". Em virtude deste lugar ocupado por E. G. White entre os adventistas do sétimo dia, seus escritos inspirados são uma fonte constante de informação e orientação na interpretação da Bíblia. O exegeta cuidadoso consultará constantemente seus comentários inspirados sobre a Escritura.  

IV. O Princípio de "A Escritura Como Sua Própria Intérprete"

O princípio de "só a Bíblia" tem um corolário bem conhecido que é o princípio de "A Escritura Como Sua Própria Interprete". O princípio de "só a Bíblia (sola Scriptura)" é a afirmação formal de que a Bíblia se explica por si mesma.

O próprio Jesus Cristo, o Exemplo do crente (1 Pe 2:21), aplicou este princípio quando, começando com os escritos de Moisés e continuando por todo o resto do VT, "explicava-lhes [aos discípulos] o que dEle se achava em todas as Escrituras" (S. Luc. 24:27, AA). O

Apóstolo S. Paulo recomendou que devemos sempre ir "comparando41 as coisas espirituais com as espirituais" (1 Cor. 2:13, AA). A ideia parece ser a de explicar e interpretar as coisas ou verdades espirituais, baseando-nos na inspirada Palavra de Deus. A injunção de Pedro é "que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal" (2 Pe. 1:20, CBC). A palavra "profecia" tal qual é usada pela Escritura, não se limita às profecias preditivas, aquelas que predizem os acontecimentos futuros, mas se aplica a qualquer declaração inspirada.

E. G. White repete insistentemente o fato de que "a Bíblia explica-se por si mesma." O mesmo pensamento, redigido um pouco diferente, diz que devemos tomar as "Escrituras como seu próprio intérprete." A aplicação hermenêutica deste princípio significa que "texto explica texto, sendo uma passagem a chave de outras passagens.

A constante admoestação, "Fazei da Bíblia seu próprio expositor,"47 vem do reconhecimento completo do princípio de auto-interpretação da Escritura, tal como foi mantido pelos reformadores. U. Zuínglio "viu que ela [a Bíblia, como Palavra de Deus, única regra suficiente, infalível] deveria ser seu próprio intérprete." Este princípio de "fazer as Escrituras o seu próprio interprete" foi aplicado também por G. Miller, e foi seguido pelos adventistas que mantêm "a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas." Baseando-se numa aplicação própria deste princípio, Ellen G. White sustenta que "as opiniões de homens ilustrados, as deduções da ciência, os credos ou decisões dos concílios eclesiásticos, tão numerosos e discordantes como são as igrejas que representam, a voz da maioria — nenhuma destas coisas, nem todas em conjunto, deveriam considerar-se como prova, em favor ou contra qualquer ponto de fé religiosa."51 Está claro, portanto, que a interpretação bíblica entre os adventistas do sétimo dia se fundamenta no princípio da Reforma que afirma ser "a Escritura seu próprio intérprete (Scriptura sui ipsius interpres)".

Ver na "a Escritura seu próprio intérprete", importa em reconhecer que a Bíblia precisa ser interpretada dentro dela mesma. Significa que

uma parte da Escritura interpreta a outra.52 O velho e o Novo Testamentos lançam luz um sobre o outro. "A lei [que faz parte do VT] é o evangelho consubstanciado, e o evangelho [o NT] é a lei [o VT] é desdobrada." O VT é a chave que descerra o NT55 e, vice-versa, o evangelho do NT é a chave que desvenda os mistérios, os tipos e sombras,57 do VT. Ambos os Testa mentos são igualmente essenciais,58 porque ambos participam de sua mútua interpretação. A revelação da Escritura não deve ser interpretada à luz de conhecimentos obtidos através de qualquer fonte (p. ex., tradição da história eclesiástica, filosofia, ciência, religiões não bíblicas, etc.), cuja autoridade seja considerada como sendo igual ou estando acima da Escritura, mas sim à sua própria luz e fundamentando-se no seu próprio contexto canônico.

O princípio de auto-interpretação da Escritura — "a Escritura seu próprio intérprete" — refuta o conceito de que qualquer homem seja o intérprete dela, alinhavando indiscriminadamente juntos textos que sirvam à conveniência dos seus próprios caprichos. Assim como o VT interpreta o Novo e o Novo o Velho, como uma porção da Escritura interpreta a outra, assim também uma passagem da Escritura serve de chave para outras.59 Em sua aplicação geral, isto indica que uma passagem que serve de chave para outras deve ser clara, e que estas outras passagens da Escritura necessitam de interpretação devido a certos graus de obscuridade que possuem. As passagens difíceis devem ser interpretadas com o auxílio de textos que sejam claros.

Uma passagem difícil ou obscura não deve ser interpretada pela aplicação indiscriminada de qualquer outro texto ou passagem bíblicos. Existem amplas evidências de que um tal procedimento leva apenas à confusão e à contradição." No processo de auto-interpretação da Escritura, comparando e interpretando passagem com passagem e texto com texto, é preciso que o estudioso se guie apenas pelas passagens ou textos que tratam do mesmo assunto. Observando o sentido das passagens e textos que tratam do mesmo assunto sob vários ângulos, o

intérprete da Escritura pode aguardar sua chegada ao verdadeiro significado da Bíblia e ver a luz brilhando sobre significados ocultos.

No processo de deixar a Escritura interpretar a Escritura, quando se analisa um conjunto de vários textos e passagens que tratam do mesmo assunto, e preciso não restringir o estudo destes textos e passagens apenas aos que se referem a mesma época ou período histórico, e as mesmas circunstâncias. Esta é uma tentação que sempre se apresenta sob a influência das consequências do criticismo histórico com sua ênfase sobre o caráter completamente humano dos documentos bíblicos. Permitindo que a Escritura seja seu próprio interprete, quem se empenha na interpretação bíblica fará o possível, dentro do melhor das suas capacidades, para reunir tudo o que e dito sobre um determinado assunto, tirando este material de épocas e circunstancias diferentes. Embora se insista veementemente para que as diversas passagens que tratam do mesmo assunto sejam comparadas e estudadas em conjunto, apenas se pode esperar que o verdadeiro significado da Escritura esteja de acordo com a plenitude da revelação da Bíblia quando as passagens reunidas pertencerem a vários autores e ao maior número possível de épocas e circunstâncias. Este procedimento se justifica quando se tomar por base a dimensão da Escritura como inspirada Palavra de Deus, porque esta, sendo adequadamente usada, não faz injustiça aos vários aspectos dum tema apresentado por escritores inspirados diferentes.

V. Objetividade e Interpretação

Todos quantos se empenham numa interpretação já têm, voluntária ou involuntariamente, uma certa pré-compreensão do assunto. É um truísmo bem conhecido que não existe uma objetividade absoluta. O intérprete sofre a tentação constante de dar as palavras dos escritores opiniões e significados que eles não queriam expressar. Para evitar que isto aconteça, já se propôs a aplicação do princípio da "cabeça vazia", segundo o qual não se deve "ler para dentro" o texto (eisegesis), i.e., não

se deve ler o que não está no texto. De acordo com este princípio — o da "cabeça vazia" — se deve abandonar toda a noção e opinião preconcebida e abordar o texto de uma maneira completamente neutra, e assim se empenhar na interpretação bíblica. Não é isto pedir o impossível? Se o intérprete conhece as línguas bíblicas, por exemplo, sem dúvida que aprendeu o significado das palavras e conseguiu absorver uma compreensão de gramática e sintaxe que foi trabalho de várias gerações. Ninguém consegue despojar-se desta "bagagem". O princípio da "cabeça vazia" dificilmente pode ser advogado, porque quanto menos cultivado for o conhecimento e a compreensão do intérprete, quanto menos formados forem seu juízo e sua inteligência, maior é a possibilidade dele dar às palavras, ao texto ou ao livro, um significado que lhes seja alheio. Inversamente, quanto mais geral e variada for a experiência do tradutor, quanto mais profundo e amplo for o desenvolvimento de sua compreensão, quanto mais detalhado for seu conhecimento do ambiente cultural da obra que vai interpretar, maior é a esperança de que seus julgamentos sejam mais equilibrados, e de que ele consiga descobrir o verdadeiro significado do texto.

Todo tradutor deve trabalhar compreendendo perfeitamente a necessidade absoluta de ser tão objetivo quanto possível. Precisa fazer um esforço consciente para, cada vez mais se aperceber das suas próprias pré-compreensão e pressuposições, e procurar controlar, quanto possível, suas próprias preferências. Se deseja conseguir o verdadeiro conhecimento, precisa silenciar sua própria subjetividade dentro do melhor das suas capacidades. Estes requisitos fazem bom senso enquanto forem tomados no sentido de que o tradutor deve silenciar seus desejos pessoais naquilo que diz respeito ao resultado da tradução.

O intérprete tradutor precisa dar-se conta de que não pode esperar um aumento da sua capacidade de compreender a Escritura através de qualquer esforço consciente que faça visando assegurar para si mesmo um ponto de vista neutro e nem mesmo um que se harmonize com a Escritura, mas deve saber que pode consegui-lo através de uma Interpretação Bíblica: Princípios Gerais 19

adaptação da mente, do coração e da compreensão completa da vida ao que ouve de Deus através da própria Escritura. É o próprio Deus Quem, através da Bíblia e do Espírito Santo, cria no intérprete as pressuposições necessárias e as perspectivas essenciais para a compreensão da Escritura. Na Bíblia nos defrontamos com uma compreensão de Deus, de nós mesmos, dos nossos semelhantes e do mundo que nos cerca, que é única e que não pode ser conhecida através de qualquer outra fonte. É devido à unicidade absoluta da Bíblia que a revelação da Escritura precisa comunicar não só o seu conteúdo, mas também a possibilidade de recebê-lo, de modo que, usar qualquer conhecimento obtido de outras quaisquer fontes como base para compreender sua mensagem, resultará apenas na má compreensão dela.65 Para interpretar a Bíblia é necessária uma iluminação constante do Espírito Santo.

A prática de empregar uma determinada filosofia (seja aristotélica, hegeliana, idealista, existencialista, processo filosófico, etc.) como requisito para ser usado na tarefa de interpretação e exegese, significa sobrepor um elemento externo à Escritura que vai subordinar esta aos pensamentos humanos. Isto significa que uma previa autocompreensão humana obtida com base num preparo filosófico para a interpretação da Bíblia, resulta sempre no estabelecimento dum critério para julgar a verdade bíblica e se transforma num padrão que pretende ser superior à revelação divina. Ela, a autocompreensão humana obtida através de fundamentos filosóficos, se transforma numa autoridade final. É preciso reconhecer os resultados duma tal abordagem, porque ela sacrifica a autoridade da Escritura e a submete à do homem. Doutro lado, a subjetividade do homem é vencida quando o intérprete permite que Deus lhe fale através do texto da Escritura, deixando que este o leve a uma relação com Deus, relação que o fará conhecer a verdade como se tivesse aberto sua própria vida à ação salvadora de Deus através de Jesus Cristo e ao poder iluminador do Espírito Santo.

Baseando-se nestes fundamentos relativos à interpretação bíblica, isto é, a natureza, unicidade, autoridade e unidade da Bíblia, e buscando

 o auxílio de corolários hermenêuticos como "só a Bíblia" e "a Escritura, sua própria intérprete", podemos reafirmar os objetivos desta inter-pretação bíblica. Eles, sendo próprios e adequados, buscam, (1) determinar o que o escritor inspirado, como instrumento escolhido de Deus, compreendia, ele mesmo, e o que queria comunicar aos ouvintes e/ou leitores dos seus dias, (2) compreender e expor o significado profundo e a implicação completa, intencionais ou implícitos, das palavras do profeta, estivesse ele ou não consciente disto, e (3) traduzir e transmitir tudo para o homem moderno.
Gerhard F. Hasel

Pr. Cirilo Gonçalves
Evangelista da IASD - AP, SP
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